Esta é uma resenha da Ciranda da Poesia, escrita por Ana
Paula Macedo Cartapatti Kaimoti, que saiu na revista Raído, publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Letras
da Universidade Federal da Grande Dourados, de Mato Grosso do Sul, em
junho/julho de 2015. (Kaimoti, Ana. D. Douglas Diegues: por Myriam
Ávila, revista Raído, Mato Grosso do Sul, p. 173, junho/julho de
2015)
Ana Paula Macedo Cartapatti Kaimoti
Já há algum tempo, a cena atual da crítica de poesia no Brasil tem manifestado
uma dificuldade que, a depender do crítico, é atribuída ou à produção poética contemporânea
ou a obstáculos que resultam do trabalho da própria crítica. No primeiro
caso, considera-se que, da década de 90 do século XX para cá, houve um excesso de
conservadorismo, sinalizador de um engessamento da experimentação, ligada à vanguarda
concreta, e uma banalização da experiência, no sentido em que ela foi proposta
pela poesia marginal. Nessa perspectiva, parte-se do pressuposto que a última referência
transformadora da poesia brasileira se deu no embate entre concretismo e poesia
marginal, paradigma do qual nenhum poeta pode fugir a não ser por meio de uma
espécie de recalque, por si só significativo, porque indica uma relação problemática e,
a contrapelo, produtiva, com essa herança (SISCAR, 2005).
No entanto, essa crise não demonstra, necessariamente, que a poesia brasileira está em falta, mas que sofreu mudanças, sinalizadoras de um distanciamento dos vários projetos ligados aos modernismos e sua relação com a identidade nacional e com a modernização, resultado de uma dispersão própria das culturas globalizadas da contemporaneidade. A dificuldade mencionada indicaria uma crise que, para Rezende (2013) e Vasconcelos (2013), não está exatamente nos poetas, variados e abundantes, mas na crítica, incapaz de abrir-se para a leitura de textos que exigem a elaboração de outros cânones e a ampliação do critério de invenção, para além daqueles da grande poesia moderna, de modo a captar “o universo de forças multiculturais, transdisciplinares da atualidade” e criar condições para que essa produção tenha circulação social e valor cultural reconhecido.
Nesse contexto, o lançamento da Coleção “Ciranda da Poesia”, pela editora da
UERJ, em dezembro de 2010, tem um valor significativo. Organizada por Italo Moriconi,
com a participação de Diana Klinger (UFF), Marcos Siscar (Unicamp), Masé
Lemos (UERJ) e Viviana Bosi (USP), a coleção vem lançando, desde então, a últimas
publicações saíram em 2012, pequenas antologias de poesia, elaboradas por críticos, poetas e poetas-críticos, responsáveis por selecionar textos e apresentar uma apreciação
da obra dos autores escolhidos. Inicialmente, a proposta focalizava sobretudo a releitura
da poesia brasileira da década de 70, mas passou a incorporar também volumes que
tratam tanto da poesia brasileira mais recente quanto de poetas estrangeiros. Alguns
dos autores-organizadores são também objetos de leitura das obras da coleção, que
rendeu diálogos interessantes como a leitura dos poemas de Marcos Siscar por Masé
Lemos e da obra de Ana Cristina César por Siscar, dos poemas de Leonardo Fróes por
Ângela Melim e da obra de Melim por Ana Chiara. Além disso, há achados singulares
como o do volume sobre o poeta romeno Guérasim Luca, pouco conhecido no Brasil,
com apreciação, organização e tradução da poetisa e artista visual Laura Erber, cuja
dissertação de mestrado trata do autor.
Essa introdução justifica-se como forma de localizar, no contexto maior da nossa
crítica literária, tanto a Coleção quanto o volume sobre o qual nos deteremos com
mais vagar, dentre os mais de vinte que fazem parte da Ciranda: aquele que trata da
poesia de Douglas Diegues e que foi organizado por Myriam Ávila, professora e pesquisadora
da UFMG, publicado em 2012. No contexto mencionado, a obra de Diegues
encontra-se à margem do corpus da poesia brasileira contemporânea.
Variada, essa obra inclui: os poemas, o trabalho como tradutor e organizador das canções indígenas guaranis em edição impressa, como editor e autor de livros kartoneros, que reaproveitam o papelão dos catadores para compor edições artesanais, sua atuação na mídia digital e em eventos paralelos nos quais declama seus textos. Ávila foi provavelmente a primeira a publicar um texto sobre o autor, depois de os sonetos selvagens de Da gusto andar desnudo por essas selvas chamarem-lhe a atenção, em 2002. Ali, a pesquisadora encontrou uma singularidade: a reinvenção do soneto inglês, a partir do trabalho com os dejetos da vida urbana e periférica, triple fronteiriça, num registro inventado, o da língua poética do portunhol selvagem, que mistura guarani, espanhol, português.
A despeito do caráter exótico desse traço, a leitura que Ávila faz da obra de Diegues segue o sentido da prática de análise que a Eduerj destaca na Coleção e procura privilegiar a escrita do autor e o papel do portunhol selvagem nesse âmbito. A pesquisadora esclarece também que não pretende posicionar a obra do autor na produção contemporânea mais canônica porque procura exercer a liberdade de escolher seu objeto de leitura ao sabor do gosto e do acaso, elaborando assim seu próprio cânone, assumindo os riscos implicados na empreitada, observação que justifica sua escolha por um poeta pouco lido pela crítica especializada.
Ainda assim, as observações da pesquisadora indicam afinidades entre a poesia de Diegues e a de Manoel de Barros, Sousândrade e Oswald de Andrade, e também diferenças em relação a esses poetas que estariam não exatamente no portunhol selvagem, mas na maneira como a escrita do autor aproxima a poesia letrada de vertentes da música popular brasileira, como o samba e o repente nordestino, além do rap e do hip hop. Desse universo, os sonetos, os poemas em prosa e a prosa poética exploram as diversas formas do paralelismo, os refrães, as variações, as anáforas, a fragmentação da parataxe, o ilogismo do nonsense e do non sequitur, recursos a partir dos quais o portunhol selvagem ganha uma dimensão mais complexa, como forma de trapacear o fascismo inerente aos usos da língua, propondo um uso libertário das palavras, como podemos vislumbrar nos seguintes versos da antologia proposta pela autora: “desafios en el corazon del dia/ acadêmicos genitales/ rimas banales/ falsa poesia”; “Por que escrebo?/ Escrebo para ficar menos mesquinho/ beleza de lo invisible/ non tem nada a ver com berso certinho” (2012, p. 65 e 70).
Variada, essa obra inclui: os poemas, o trabalho como tradutor e organizador das canções indígenas guaranis em edição impressa, como editor e autor de livros kartoneros, que reaproveitam o papelão dos catadores para compor edições artesanais, sua atuação na mídia digital e em eventos paralelos nos quais declama seus textos. Ávila foi provavelmente a primeira a publicar um texto sobre o autor, depois de os sonetos selvagens de Da gusto andar desnudo por essas selvas chamarem-lhe a atenção, em 2002. Ali, a pesquisadora encontrou uma singularidade: a reinvenção do soneto inglês, a partir do trabalho com os dejetos da vida urbana e periférica, triple fronteiriça, num registro inventado, o da língua poética do portunhol selvagem, que mistura guarani, espanhol, português.
A despeito do caráter exótico desse traço, a leitura que Ávila faz da obra de Diegues segue o sentido da prática de análise que a Eduerj destaca na Coleção e procura privilegiar a escrita do autor e o papel do portunhol selvagem nesse âmbito. A pesquisadora esclarece também que não pretende posicionar a obra do autor na produção contemporânea mais canônica porque procura exercer a liberdade de escolher seu objeto de leitura ao sabor do gosto e do acaso, elaborando assim seu próprio cânone, assumindo os riscos implicados na empreitada, observação que justifica sua escolha por um poeta pouco lido pela crítica especializada.
Ainda assim, as observações da pesquisadora indicam afinidades entre a poesia de Diegues e a de Manoel de Barros, Sousândrade e Oswald de Andrade, e também diferenças em relação a esses poetas que estariam não exatamente no portunhol selvagem, mas na maneira como a escrita do autor aproxima a poesia letrada de vertentes da música popular brasileira, como o samba e o repente nordestino, além do rap e do hip hop. Desse universo, os sonetos, os poemas em prosa e a prosa poética exploram as diversas formas do paralelismo, os refrães, as variações, as anáforas, a fragmentação da parataxe, o ilogismo do nonsense e do non sequitur, recursos a partir dos quais o portunhol selvagem ganha uma dimensão mais complexa, como forma de trapacear o fascismo inerente aos usos da língua, propondo um uso libertário das palavras, como podemos vislumbrar nos seguintes versos da antologia proposta pela autora: “desafios en el corazon del dia/ acadêmicos genitales/ rimas banales/ falsa poesia”; “Por que escrebo?/ Escrebo para ficar menos mesquinho/ beleza de lo invisible/ non tem nada a ver com berso certinho” (2012, p. 65 e 70).
No sentido do trabalho de Ávila com as poéticas do estranhamento, esses aspectos
mostram uma resistência à ordem prosaica do discurso e expõem o esvaziamento de
sentido da experiência humana, compondo um conjunto heterogêneo que faz mais
tensa e grotesca a imagem “urbano-selvática do segundo milênio” construída pelos textos.
A pesquisadora também relaciona esses traços ao rasquache, abordagem das artes
plásticas chicanas que usa como material elementos descartados do cotidiano das cidades,
recombinados esteticamente. Os dejetos da sociedade midiática e do consumo,
somados a um uso frequente da escatologia, sujam o texto de Diegues e mostram o
quanto a obra do autor “[...] faz convergir em si as linhas de força da ‘vida danificada’,
transformando assim sua poesia em caso exemplar, ícone e avatar dos desenvolvimentos
mais recentes” (ÁVILA, 2012, p. 8).
Ligado ao nonsense, Ávila destaca ainda um traço sui generis dessa obra, a manifestação
de um pathos, um investimento emocional excessivo, expresso no tom declamatório
e profético do eu-lírico, que age por meio do texto, a exortar o leitor à ação
e à reflexão, deixando pouco espaço à interioridade lírica. Sua denúncia irônica expõe
a ausência de poesia num mundo banalizado, ao compor a acusação justamente com
os restos desse universo, assumindo a impossibilidade ou a dificuldade de se elaborar
uma saída viável dessa situação: “O poeta, de certo modo, entrega-se por não se poder
negar, em seus versos, à proximidade da sociedade do espetáculo, pois é diante dela e
da possibilidade de ser devorado por ela que escreve” (ÁVILA, 2012, p. 58). A retórica
desesperada em prol da poesia é a defesa precária e problemática contra a diluição do
papel da arte na indústria cultural. Para Ávila, é justamente a singularidade dessa aposta
que o destaca no conjunto dos poetas brasileiros contemporâneos.
Desse modo, o volume em questão mostra o quanto a Coleção se posiciona de forma
inovadora ao abrir sua ciranda para um poeta cuja obra passa ao largo da crítica especializada,
tornando-se um marco da inserção ainda muito precária de Diegues no universo
mais acadêmico das editoras universitárias. Nesse sentido, a Ciranda apresenta o potencial
de propor aquilo que Rezende (2013) chama de “novo pensamento teórico-crítico”, capaz
de praticar uma leitura plural, inclusiva e democrática da poesia brasileira contemporânea.
Caso queira conhecer mais sobre o periódico Raído acesse:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.