Aqui uma conversa com Júlia Studart, professora da Unirio, autora do título da Ciranda da Poesia que trata de Nuno Ramos.
1 - Qual foi o maior desafio de trabalhar com o material literário de Nuno Ramos? (aliás, foi você que o escolheu para tema de sua análise?)
O fato é que eu fazia um pós-doutorado na Unicamp a partir do trabalho do Nuno Ramos, com bolsa de
pesquisa financiada pela FAPESP. E antes disso o trabalho dele já era
muito presente nas minhas pesquisas, nas minhas leituras diárias, porque
me interessa muito. Tudo isso o deixou muito perto da mão. Sem contar que, acho, o trabalho do
Nuno merece uma apresentação ou
uma publicação de mais fôlego a mais gente, construção de
acessos, sentidos etc. Foi assim que propus ao Ítalo
(Moriconi), coordenador da Ciranda, que topou prontamente. E aí
começou o meu impasse e
desafio: pensar a complexidade e as modulações
do trabalho expandido do Nuno dentro de uma coleção
dedicada à poesia. Há mesmo uma impossibilidade de
fixá-lo, de reduzi-lo a uma
forma, a uma ideia de gênero,
de verso etc. O trabalho do Nuno, prioritariamente, muda de forma, não se fixa, está muito mais perto de uma
forma-informe, de uma forma fraca, e
essa foi sem dúvida uma
dificuldade: dar a ver essas modulações por dentro da forma, a potência dessa metamorfose que
atravessa tanto os seus livros quanto o seu trabalho como artista visual. Indistintamente.
2 - Anteriormente, você já acompanhava o trabalho de
Nuno Ramos?
Já
acompanho há algum
tempo, desde a publicação
do primeiro livro, "Cujo", em 2003 – o meu livro favorito. Livro que
tenho, porque ganhei dele, aquela primeira edição numerada, linda e rara, num papel e
capas especiais. Talvez depois disso é
que tenha ficado mais atenta ao seu trabalho de artes visuais, até que em 2013 transformei tudo
isso em pesquisa de pós-doutorado.
3 - E a antologia de versos que é
apresentada no título. Como foi este processo de escolha?
Bem, como toda antologia –
e acho o termo um tanto problemático, prefiro pensar numa reunião
espontânea,
apenas –,
existe aí muito dos meus
interesses, das coisas que mais gosto no trabalho do Nuno entre invenção e algumas insistências, que gosto de chamar de
'imagens intermitentes', que são recorrentes no seu trabalho. Também tentei, minimamente, dar a ver
as variações do seu texto
até o ainda inédito "Sermões", experiência
extremamente distinta dos outros livros.
4 - E como se chegou à inclusão de material de Sermões?
Nuno Ramos possui alguns livros publicados, mas que felizmente não se deixam fixar tão facilmente, principalmente se pensarmos em categorias como a de gênero literário. Já que a ideia da coleção é de dar uma pequena mostra do trabalho com a linha, com o verso, com o poema em prosa e com o pensamento, falei do livro-antologia para o Nuno e perguntei se ele não estava com nada pronto ou se trabalhava em algum projeto novo relacionado à poesia - o que daria outros sentidos tanto para a minha leitura crítica, quanto para a seleção de textos. Foi assim que me disse do seu "Sermões" e que gentilmente me cedeu para leitura e uso de alguns fragmentos. O bacana foi que "Sermões" terminou por provocar uma boa conversa e troca entre nós acerca de outras questões.
5
- Você acredita que existe algum
tipo de diferença em relação a autores que se expressem apenas com a
literatura para aqueles como Nuno Ramos que utilizam várias formas como a artes plásticas, músicas, etc? (aqui nesta pergunta me refiro ao processo de criação. Por exemplo, se você acha que o artista
plástico Nuno Ramos poderia influenciar o
escritor Nuno Ramos).
Faz toda a diferença. Por mais que o próprio
Nuno procure separar essas duas instâncias
[escritor e artista visual, sem contar as suas outras tantas atribuições],
seu trabalho é absolutamente
impuro, contaminado. Alguns trabalhos de arte incorporam textos seus ou de
outros poetas, como Manuel Bandeira e Drummond, e seus livros se armam como
grandes instalações movediças, extremamente plásticas, instáveis. Ou seja, Nuno, mesmo sem
que o saiba [se é mesmo que não sabe], arma uma grande transparência
entre os seus trabalhos, todos eles, e cria uma espécie de “ambiente”,
como parece estar definido já em “Cujo”: “A transparência é
uma camada que mal se percebe (a não ser pelos reflexos), mas que cria
uma espécie
de ambiente.” O que dizer de um livro como "Cujo", um misto de
instalação,
poema, livro de notas e procedimentos de trabalho? Sem contar que Nuno Ramos é um excelente leitor de nossa
melhor tradição, carrega uma biblioteca no corpo [o que me interessa
muito para o que penso e para o que faço no meu trabalho] e faz com que seu
trabalho seja de fato muito singular no meio de toda essa nossa produção muitas vezes incipiente e
pobre em invenção.